terça-feira, 5 de julho de 2011

Do Cielo ao inferno: o dia em que César vendeu a alma ao diabo



por Lúcio de Castro - ESPN

Farmácia em Santa Bárbara d` Oeste confirma de bate-pronto uma história surreal, que só suja a própria imagem. Sem endereço, nome conhecido, rosto ou fachada. Conhecida apenas por via dos médicos da Confederação de Natação. Mistura de substâncias no ato da manipulação como se estivéssemos falando de uma cozinha de pé-sujo da esquina. O médico-político de sempre para falar de doping e em nome do antidoping. A imediata absolvição da Confederação. A mesma Confederação que demorou anos para constatar o óbvio no caso Rebeca Gusmão, encoberta em sua depois comprovada fraude durante anos por um esquema que nem o mais ingênuo acredita não passar por gente alta.

O nonsense total de querer que se acredite que todos os outros envolvidos tinham tomado os comprimidos do mesmo frasco manipulado na farmácia que ninguém conhece. Mesmo atletas de clubes distintos. A inacreditável variação de punições para as mesmas faltas e mesmas substâncias: Cielo apenas advertido. Daiane e Daynara suspensas meses antes pela mesma falta e substância.

Poderíamos ir além em dezenas de questões para mostrar que é horrível ser chamado de bobo diante de tantas evidências. Mesmo assim, há que se respeitar o veredito. Se as evidências e provas foram desqualificadas pela entidade, resta-nos apenas seguir formulando perguntas, e não emitir vereditos ou fazer juízos. Não é a intenção desse texto bater martelo, dar o sim ou não.

Gostaria de abordar um outro aspecto. Sobre o qual posso ter absoluta certeza do veredito e dos desdobramentos: o episódio amarra César Cielo, campeão olímpico que surgiu com sopro de rebeldia e questionando as condições do esporte brasileiro. Faz com que troque de lado em definitivo: devedor de um favor a quem o absolve da acusação de ser um dopado, de conquistar resultados de forma ilícita, nunca mais dirá uma palavra sobre qualquer mazela do esporte nacional. Está desde a última sexta atrelado aos caprichos do cartola máximo da entidade do esporte que pratica. E rezará pela cartilha dele. Ali na esquina se diria que está com o rabo preso desde então.

Não é pouca coisa. É sim um aspecto pouco abordado desde o anúncio mas é algo que diz muito sobre o esporte brasileiro e o estado das coisas, mandos e desmandos. Sobre o modo de agir dos nossos cartolas e como se vão matando qualquer foco de possível inquietação. Que no caso de Cielo já havia dormido um pouco. Quem não se lembra do episódio onde botou a boca no mundo, detonou a natação brasileira, o trabalho feito aqui pela Confederação e foi então chamado pelo cartola Coaracy Nunes para um papo em salinha reservada do locar onde se disputava a competição. Ao sair, o discurso já era outro, mais ameno, e logo então foi anunciado novo patrocínio ao campeão. Sem julgamentos aqui, apenas uma constatação do que houve.

Agora o laço que se estabelece é maior. De dívida, de silêncio, de protetor e protegido. De cooptação. Mesmo que o preço seja o esporte brasileiro nadando em águas literalmente turvas. (Quem viu a entrevista de Marcelo Gomes no “Histórias do Esporte” com Joana Maranhão percebeu a vontade da nadadora em gritar algo que sabia errado).

Quem não se lembra do episódio Giba? O craque do vôlei tinha lampejos interessantes fora de quadra em alguns momentos, reivindicando premiação aos seus companheiros, condições melhores de calendário e viagem. Até o dia do fatídico doping, ainda que equivocado por princípio, já que não estamos falando de substância usada para obter vantagem. Mas naquele dia, na coletiva ao lado do cartola do vôlei, que trabalhara por pena pequena, a alma estava entregue. O agradecimento foi só a admissão.

Em breve veremos o discurso alinhado de César Cielo ao cartola a quem outro dia criticou. Será o preço a ser pago. A encruzilhada onde entregará a alma e onde muitas vezes o esporte brasileiro se perde na pasmaceira e no jogo de trocas no sentido menos nobre da expressão.

Mais triste do que a cada dia constatar que aquela nossa velha esperança de que é mentira ser impossível no alto nível do esporte chegar ao topo limpo em algumas modalidades, é ver mais um entregando a alma aos Coisas Ruins, pagando o preço da relação escusa, onde um encobre o ilícito e o outro diz amém e se torna mais um em uma engrenagem contaminada.

Por tudo isso, um dos grandes herois brasileiros dos últimos tempos perde um pouco do brilho. Novamente não falamos aqui em resultados e provas e sim de atitudes nessa engrenagem. Ao entregar a alma ao diabo em troca das benesses de um julgamento desigual, o heroi perde a condição que Homero preconizava para ser um heroi: poder atingir a excelência, que para os gregos era um conjunto de valores. Entre esses valores, sem os quais não se chega a excelência, está a Timé, ou seja, a honra.

Tal e qual Dorian Gray, Cielo vendeu a alma ao diabo para manter a foto na parede intacta. Pagará o preço a partir de agora em todos os próximos dias de sua vida.

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