Esta entrevista foi extraída do site www.diarioliberdade.org
A estação alternativa de rádio estadunidense Democracy Now, na pessoa da sua principal animadora Amy Goodman, entrevistou à distância o linguista, filósofo e activista libertário Noam Chomsky.
Foi em vésperas do seu 82º aniversário. Uma longa conversa que publicamos em duas partes – hoje a primeira. Por Noam Chomsky e Amy Goodman.
Numa entrevista exclusiva falámos com o dissidente político e linguista de fama mundial Noam Chomsky sobre a publicação de mais de 250.000 telegramas secretos do Departamento de Estado dos EUA, por parte da WikiLeaks. Em 1971 Chomsky ajudou o informador de dentro do governo [estadunidense] Daniel Ellsberg a publicar os “Documentos do Pentágono”, um relatório interno secreto dos Estados Unidos sobre a guerra do Vietname. Em comentário a uma das revelações, de que vários líderes árabes pressionam os EUA para atacarem o Irão, Chomsky diz: “As últimas sondagens mostram que a opinião dos árabes é que a maior ameaça na região é Israel, com 80% dos entrevistados, e em segundo lugar vêm os EUA com 77%. O Irão aparece como uma ameaça para 10%”, explica. “Isto pode não aparecer na imprensa, mais de certeza algo que os governos israelita e estadunidense, e os seus embaixadores, sabem. O que isto revela é o profundo ódio à democracia por parte dos nossos dirigentes políticos”.
Amy Goodman [AG]: Encontramo-nos com o distinto dissidente político e linguista de reputação mundial Noam Chomsky, professor emérito do Massachusetts Institute of Technology e autor de mais de cem livros, incluindo o seu mais recente Esperanças e realidades, para obter a sua reacção aos documentos da WikiLeaks. Há quarenta anos, Noam e Howard Zinn ajudaram o denunciante de dentro do governo Daniel Ellsberg a editar e publicar os “Documentos do Pentágono”, a história interna ultra-secreta dos EUA da guerra do Vietname. Noam Chomsky fala-nos a partir de Boston… Antes de falarmos da WikiLeaks, qual foi a sua participação nos “Documentos do Pentágono”? Não creio que a maioria das pessoas esteja informada sobre isso.
Noam Chomsky [NC]: Dan e eu éramos amigos. O Tony Russo também os preparou e ajudou a filtrá-los. Recebi cópias do Dan e do Tony e várias pessoas as distribuíram à imprensa. Eu fui uma delas. Então o Howard Zinn e eu, como você disse, editámos um volume de ensaios e indexámos os documentos.
AG: Explique como funcionou. Penso sempre que é importante contar essa história, especialmente aos jovens. Dan Ellsberg – funcionário do Pentágono com acesso ao máximo segredo – saca da sua caixa de fundos essa história da intervenção dos EUA no Vietname, fotocopia-a, e então como veio parar às suas mãos? Entregou-lha directamente a si?
NC: Chegou-me por intermédio de Dan Ellsberg e de Tony Russo, que tinham feitos as fotocópias e preparado o material.
AG: Foi muito editado?
NC: Bem, nós não modificámos nada. Não corrigimos os documentos. Ficaram na sua forma original. O que fizemos, o Howard Zinn e eu, foi preparar um quinto volume além dos quatro que apareceram, que continha ensaios críticos de muitos peritos sobre os documentos, o que significavam, etc. E um índice, que é quase imprescindível para poderem ser seriamente utilizados. É o quinto volume da série da Beacon Press.
AG: Então foi um dos primeiros a ver os documentos do Pentágono?
NC: Sim, para além do Dan Ellsberg e do Tony Russo. Quer dizer, talvez tenha havido alguns jornalistas que puderam vê-los, mas não tenho a certeza.
AG: E actualmente, o que pensa? Por exemplo, acabamos de reproduzir o vídeo do congressista republicano Peter King, que diz que se deveria declarar a WikiLeaks como organização terrorista estrangeira.
NC: Penso que é revoltante. Temos de compreender – e os Documentos do Pentágono são outro exemplo claro – que uma das principais razões do segredo governamental é proteger o governo contra a sua própria população. Nos Documentos do Pentágono, por exemplo, houve um volume – o volume das negociações – que poderia ter tido influência nas actividades em curso, e o Daniel Ellsberg não o revelou logo. Apareceu pouco depois. À vista dos documentos propriamente ditos, há coisas que os estadunidenses deveriam ter sabido e que outros queriam que não se soubessem. E, que eu saiba, pelo que eu próprio vi deste caso, agora é o mesmo. De facto, as revelações actuais – pelo menos as que eu vi – são interessantes, sobretudo pelo que nos esclarecem sobre como funciona o serviço diplomático.
AG: As revelações dos documentos acerca do Irão aparecem precisamente no momento em que o governo iraniano aceitou uma nova ronda de conversações nucleares para o começo do próximo mês. Na segunda-feira, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu disse que os telegramas reivindicam a posição israelita de que o Irão constitui uma ameaça nuclear. Netanyahu disse: “A nossa região tem estado presa a uma narrativa que é o resultado de sessenta anos de propaganda que apresenta Israel como principal ameaça. De facto, os dirigentes compreendem que esse ponto de vista está na falência. Pela primeira vez na história existe um acordo de que a ameaça é o Irão. Se os dirigentes começarem a dizer às claras aquilo que têm dito à porta fechada, podemos realizar uma mudança radical na caminhada para a paz.” A secretária de Estado Hillary Clinton também falou do Irão na sua conferência de imprensa em Washington. Disse o seguinte:
Hillary Clinton: “Creio que não deveria ser surpresa para ninguém que o Irão é uma fonte de grande preocupação, não só para os EUA. Em todas as reuniões que tenho, em qualquer parte do mundo, aparece a preocupação com as acções e as intenções do Irão. Por isso, qualquer dos alegados comentários dos telegramas confirma que o Irão representa uma ameaça muito séria do ponto de vista dos seus vizinhos e uma preocupação muito séria muito para além da sua região. Por isso a comunidade internacional se reuniu para aprovar as sanções mais duras possíveis contra o Irão. Isso não aconteceu porque os EUA tivessem dito ‘Por favor, façam isso por nós!’. Aconteceu porque os países – depois de avaliarem as provas quanto às acções e às intenções do Irão – chegaram à mesma conclusão que os EUA: que temos de fazer o que pudermos com o fim de unir a comunidade internacional para que ela actue e impeça o Irão de se converter em um Estado com armas nucleares. De modo que, se os que lerem as histórias sobre esses, em supostos telegramas, pensarem cuidadosamente, chegarão à conclusão de que as preocupações com o Irão são bem fundadas, são amplamente partilhadas e continuarão a ser fundamento para a política que mantemos com os países que têm a mesma opinião, para impedir que o Irão adquira armas nucleares.”
AG: Assim falou a secretária Hillary Clinton, ontem, numa conferência de imprensa. Qual o seu comentário sobre Clinton, sobre o comentário de Netanyahu, e o facto de Abdullah da Arábia Saudita – o rei que está a ser operado às costas em Nova Iorque – ter incitado os EUA a atacarem o Irão.
NC: Isso só vem reforçar o que eu disse antes, que o significado principal dos telegramas que têm sido publicados é, até agora, o que nos dizem sobre os dirigentes políticos ocidentais. Hillary Clinton e Benjamin Netanyahu de certeza conhecem as cuidadosas sondagens da opinião pública árabe. O Brookings Institute publicou há poucos meses amplas sondagens sobre o que pensam os árabes acerca do Irão. Os resultados são bastante impressionantes. Mostram que 80% da opinião árabe considera que a maior ameaça na região é Israel. A segunda maior ameaça são os EUA, com 77%. E o Irão só é referido como ameaça por 10%. No que diz respeito às armas nucleares, de um modo bastante notável, há 57% que diz que, se o Irão possuísse armas nucleares, isso teria um efeito positivo na região. Pois bem, não se trata de cifras pequenas. 80% e 77%, respectivamente, dizem que Israel e os EUA constituem a maior ameaça. 10% dizem que o Irão é a maior ameaça.
Claro que, aqui, os jornais nada dizem sobre isso – dizem-no na Inglaterra – mas é certamente algo que os governos de Israel e dos EUA e os seus embaixadores sabem muito bem. Mas não se vê aparecer uma palavra sobre isso. O que isso revela é o profundo ódio à democracia por partes dos nossos dirigentes políticos e dos dirigentes políticos israelitas. São coisas que nem referidas podem ser. Isso impregna todo o serviço diplomático. Não há nenhuma referência a isso nos telegramas.
Quando falam dos árabes referem-se aos ditadores árabes, não à população, que se opõe rotundamente às conclusões dos analistas, neste caso Clinton e os médias [a mídia]. Também há um problema menor que é o maior problema. O problema menor é que os telegramas não nos dizem o que pensam e dizem os dirigentes árabes. Sabemos o que foi seleccionado daquilo que disseram. De modo que há um processo de filtragem. Não sabemos o quanto a informação é distorcida. Mas não restam dúvidas: o que é mesmo uma distorção radical – ou nem sequer uma distorção, mas sim um reflexo – é a preocupação de que o que importa são os ditadores. A população não importa, mesmo se se opõe totalmente à política estadunidense. Há coisas semelhantes noutros sítios, como as que têm a ver com essa região.
Um dos telegramas mais interessantes foi aquele de um embaixador dos EUA em Israel para Hillary Clinton, que descrevia o ataque a Gaza – que deveríamos chamar o ataque israelo-estadunidense a Gaza – em Dezembro de 2008. Indica correctamente que houve uma trégua. Não acrescenta que durante a trégua – que de facto Israel não respeitou mas o Hamas respeitou escrupulosamente segundo o próprio governo israelita –, não foi disparado um só míssil. É uma omissão. Mas logo surge uma mentira directa: diz que em Dezembro de 2008 o Hamas retomou o disparo de mísseis e que por isso Israel teve de atacar para se defender. Acontece que o embaixador não pode deixar de saber que há alguém na embaixada dos EUA que lê a imprensa israelita – a imprensa israelita dominante – e nesse caso a embaixada tem de saber que é exactamente o contrário: o Hamas estava a pedir uma renovação do cessar-fogo. Israel considerou a oferta, recusou-a e preferiu bombardear em vez de optar pela segurança. Também omitiu que Israel nunca respeitou o cessar-fogo – manteve o cerco [a Gaza] em violação do acordo de trégua – e em 4 de Novembro, dia da eleição de 2008 nos EUA, o exército israelita invadiu Gaza e matou meia dúzia de militantes do Hamas, o que motivou trocas de tiros em que todas as vítimas, como de costume, foram palestinianas. De imediato, em Dezembro, quando terminou oficialmente a trégua, o Hamas pediu que ela fosse renovada. Israel recusou e os EUA e Israel preferiram lançar a guerra. O relatório da embaixada é uma falsificação grosseira, e é muito significativa porque tem a ver com a justificação do ataque assassino, o que significa que ou a embaixada não fazia ideia do que estava a acontecer ou estava a mentir descaradamente.
AG: E o último relatório que acaba de aparecer – da Oxfam, da amnistia Internacional e de outros grupos – sobre os efeitos do cerco de Gaza? O que está a acontecer agora?
NC: Um cerco é um acto de guerra. Se alguém insiste nisso é Israel. Israel desencadeou duas guerras – 1956 e 1967 – em parte na base de que o seu acesso ao mundo exterior estava muito restringido. Esse mesmo cerco parcial que consideraram como um acto de guerra e como justificação – bem, uma entre várias justificações – para o que chamaram “guerra preventiva” ou, se preferir, profilática. Assim o entendem perfeitamente e o argumento é correcto. Um cerco é, desde logo, um acto criminoso. O Conselho de Segurança, e não só, instaram Israel a que o levantasse. Tem o propósito – como declararam os funcionários israelitas – de manter o povo de Gaza num nível mínimo de existência. Não querem matá-los todos porque não seria bem visto pela opinião internacional. Como eles dizem, “mantê-los em dieta”.
Esta justificação começou pouco depois da retirada oficial israelita. Houve umas eleições em Janeiro de 2006 – as únicas eleições livres em todo o mundo árabe – cuidadosamente monitorizadas e reconhecidas como livres, mas tiveram um defeito. Ganharam os que não deviam ganhar. Ou seja, o Hamas, os que Israel e os EUA não queriam. Rapidamente, em muito poucos dias, os EUA e Israel impuseram duras medidas para castigar o povo de Gaza por ter votado mal em eleições livres. O passo seguinte foi que eles – os EUA e Israel – trataram, em colaboração com a Autoridade Palestiniana, de provocar um golpe militar em Gaza para derrubar o governo eleito. Fracassou. O Hamas derrotou a tentativa de golpe. Foi em Julho de 2007. Então endureceram consideravelmente o assédio. Entretanto ocorreram numerosos actos de violência, bombardeamentos, invasões, etc.
Mas basicamente Israel afirma que, quando se estabeleceu a trégua no verão de 2008, o motivo por que Israel não a observou, retirando o cerco, foi o facto de um soldado israelita – Gilad Shalit – ter sido capturado na fronteira. Os comentadores internacionais consideram isso um crime terrível. Bem, pode-se pensar o que for, a captura de um soldado de um exército atacante – e o exército estava a atacar Gaza – não chega aos calcanhares do crime que é sequestrar civis. Precisamente na véspera da captura de Gilal Shalit na fronteira, as tropas israelitas tinham entrado em Gaza, sequestraram dois civis – os irmãos Muammar – e levaram-nos para o outro lado da fronteira. Desapareceram algures no sistema carcerário de Israel, onde centenas de pessoas, talvez mil, são detidas sem acusação por vezes durante anos. Também há prisões secretas. Não sabemos a que se passa nelas. Isto é, por si só, um crime muito pior do que o sequestro de Shalit. De facto, poder-se-ia argumentar que houve uma razão para se ter silenciado o facto. Israel, durante anos, de facto durante décadas, tem vindo a comportar-se assim: raptos, capturas de pessoas, sequestros de barcos, assassinatos, levar gente para Israel por vezes como reféns durante anos e anos. De modo que isso é uma prática habitual; Israel pode fazer o que entende. Mas a reacção, aqui e no resto do mundo, ao sequestro de Shalit – que não é um sequestro, não se sequestra um soldado, mas captura-se – é considerá-lo um crime horrendo e uma justificação para manter o cerco e assassinar… uma desgraça.
AG: Então temos a Amnistia Internacional, a Oxfam, a Save The Children e outras dezoito organizações de ajuda a instarem Israel para que levante, sem condições, o bloqueio a Gaza. E a WikiLeaks publica um telegrama diplomático estadunidense – transmitido ao Guardian pela WikiLeaks – que conta: “Directiva nacional de recolha de informações humanas: Pede-se ao pessoal dos EUA que obtenha pormenores de planos de viagem, como itinerários e veículos utilizados por dirigentes da Autoridade Palestiniana e membros do Hamas”. O telegrama pede: “Informação biográfica, financeira, biométrica de dirigentes e representantes mais importantes da A.P. e do Hamas, incluindo a Jovem Guarda, dentro de Gaza e da Cisjordânia, e fora”, diz.
NC: Isso não deveria ser uma surpresa. Contrariamente à imagem que é projectada neste país, os EUA não são um intermediário honesto. São participantes, e participantes directos e cruciais, nos crimes israelitas, tanto na Cisjordânia como em Gaza. O ataque a Gaza foi um caso claro: utilizaram armas estadunidenses, os EUA bloquearam as tentativas de cessar-fogo e deram apoio diplomático. O mesmo vale para os crimes diários na Cisjordânia, e não devemos esquecê-los. Na realidade, a [ONG] Save The Children informou que na área C – a parte da Cisjordânia controlada por Israel – as condições são piores do que em Gaza. Também isto acontece porque há um apoio crucial e decisivo dos EUA, tanto no plano militar como no económico; e também ideológico – o que tem a ver com a distorção da situação, como acontece também, dramaticamente, com os telegramas.
O próprio cerco é, em si mesmo, simplesmente criminoso. Não somente bloqueia a ajuda desesperadamente necessária como, além disso, afasta os palestinianos da fronteira. Gaza é um local pequeno e superpovoado. E os tiros e os ataques israelitas afastam os palestinianos do território árabe junto da fronteira e também impõe aos pescadores de Gaza o limite das águas territoriais. São forçados por canhoneiras israelitas – é tudo o mesmo, claro está – a pescar junto à costa onde a pesca é quase impossível porque Israel destruiu os sistemas eléctricos e de saneamento e a contaminação é terrível. É apenas um estrangulamento para castigar as pessoas por estarem ali e por insistirem em votar “mal”. Israel decidiu: “Não queremos mais isto. Livremo-nos deles.”
Também deveríamos lembrar que a política israelo-estadunidense – desde Oslo, desde o começo dos anos 1990 – foi separar Gaza da Cisjordânia. É uma violação directa dos acordos de Oslo, mas foi sendo implementada sistematicamente e teve muitas consequências. Significa que quase metade da população palestina ficaria à margem de qualquer possível acordo político a que se pudesse chegar. Também significa que a Palestina perde o seu acesso ao mundo exterior. Gaza deveria ter aeroportos e portos marítimos. Até agora Israel apoderou-se de cerca de 40% do território da Cisjordânia. As últimas ofertas de Obama oferecem-lhe ainda mais, e certamente os israelitas planeiam apoderar-se de mais. O que resta são pedaços de território cercados. É o que o planificador Ariel Sharon chamou bantustões. E estão também na prisão, enquanto Israel se apodera do Vale do Jordão e expulsa os palestinianos. Todos esses são crimes de uma só peça. O cerco de Gaza é particularmente grotesco dadas as condições de vida a que obriga as pessoas. Quero dizer, se uma pessoa jovem em Gaza – estudante em Gaza, por exemplo – quer estudar numa universidade da Cisjordânia, não pode fazê-lo. Se uma pessoa de Gaza precisa de um estágio ou de um tratamento médico sofisticado num hospital de Jerusalém Oriental, não pode lá ir! E não deixam passar os medicamentos. É um crime escandaloso, tudo isso.
AG: Na sua opinião, que deveriam fazer os EUA neste caso?
NC: Aquilo que os EUA deveriam fazer é muito simples: deveriam unir-se ao mundo. Quero dizer que supostamente existem negociações. Tal como são apresentadas aqui, o quadro tipicamente traçado é de que os EUA são um intermediário honesto que procura unir os opositores recalcitrantes – Israel e Autoridade Palestiniana. Isso não passa de uma farsa.
Se houvesse negociações sérias, seriam organizadas por uma parte neutral e os EUA e Israel estariam de um lado e o mundo estaria do outro. Não é um exagero. Não deveria ser segredo que desde há muito tempo existe um consenso internacional completo para uma solução diplomática, política. Todos conhecem as linhas básicas. Alguns detalhes, sim, poderão ser discutidos. [Nesse consenso] incluem-se todos, excepto os EUA e Israel. Os EUA têm vido a bloquear a solução ao longo de 35 anos, com derivas ocasionais, e breves. [Esse consenso] inclui a Liga Árabe. Inclui a Organização dos Estados Islâmicos, que inclui o Irão. Inclui todos os protagonistas relevantes com excepção dos EUA e de Israel, os dois Estados que o recusam. De modo que, se houvesse alguma vez negociações sérias, é assim que seriam organizadas. As negociações que há chegam apenas ao nível da comédia. O tópico que está a ser discutido é uma nota de rodapé, uma questão menor: a expansão dos colonatos. Claro que é ilegal. De facto, tudo o que Israel está a fazer em Gaza e na Cisjordânia é ilegal. Nem sequer tem sido polémico, desde 1967 (…)
AG: Quero ler-lhe agora a mensagem-twitter de Sarah Palin – a ex-governadora do Alaska, claro, e candidata republicana à vicepresidência. É o que ela colocou no twitter sobre a WikiLeaks. Rectifico, foi colocado no Facebook. Ela diz: “Primeiro, e antes de mais, que passos foram dados para impedir que o director da WikiLeaks, Julian Assange, distribuísse esse material confidencial altamente delicado, sobretudo depois de ele já ter publicado material, não uma vez mas duas, nos meses anteriores? Assange não é um jornalista, é-o tanto como um editor da nova revista da al-Qaeda em inglês “Inspire”. É um agente anti-EUA que tem sangue nas mãos. A sua anterior publicação de documentos classificados revelou aos talibãs a identidade de mais de 100 das nossas fontes afegãs. Porque não persegui-lo com a mesma urgência com que perseguimos os dirigentes da al-Qaeda e dos talibãs?” Que lhe parece?
NC: É exactamente o que se esperaria de Sarah Palin. Não sei o que ela entende ou não, mas acho que devemos dar atenção ao que nos dizem as revelações [da WikiLeaks]… Talvez a revelação, ou referência, mais dramática seja o ódio amargo à democracia revelado tanto pelo governo dos EUA – Hillary Clinton e outros – como pelo corpo diplomático. Dizer ao mundo – bem, de facto estão a falar lá entre eles – que o mundo árabe considera o Irão como a principal ameaça e que deseja que os EUA bombardeiem o Irão, é extremamente revelador, sabendo eles, como sabem, que cerca de 80% da opinião árabe considera os EUA e Israel como a maior ameaça, que 10% consideram o Irão como a maior ameaça, e que uma maioria de 57% pensa que a região teria a ganhar se o Irão tivesse armas nucleares, que funcionariam como um dissuasor. Isso, eles nem sequer o referem. Tudo o que referem é apenas o que foi dito pelos ditadores árabes, os brutais ditadores árabes. Isso é que conta.
Não sabemos até que ponto é representativo do que dizem, porque ignoramos qual é o filtro. Mas isto não importa muito. O aspecto mais importante é que [para eles] a população é irrelevante. Só interessam as opiniões dos ditadores que apoiamos. Se nos apoiam, então eles são o mundo árabe. É um quadro bem revelador da mentalidade dos dirigentes políticos dos EUA e, pode-se presumir, da opinião das elites. A avaliar pelos comentários que têm aparecido aqui. E é também o modo como tem sido apresentado na imprensa. O que pensam os árabes, isso não interessa.
Tradução do inglês: Passa Palavra
Original (em inglês), em DemocracyNow
sábado, 8 de janeiro de 2011
Amy Goodman entrevista Noam Chomsky: WikiLeaks, crise económica e outros temas (1ª parte)
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